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Cotas: tudo que você precisa saber | Por: Artur G. Miranda

  • Foto do escritor: Artur G. Miranda
    Artur G. Miranda
  • 11 de nov. de 2022
  • 6 min de leitura


O tema das cotas é cheio de incertezas. Quem entra nesses debates geralmente não compreende conceitos básicos, leis que institucionalizam a política de cotas e as suas características. Diante dos dez anos da lei de cotas, é importante entender os conceitos, a história e as evidências que permeiam esse debate.

Para entender melhor o debate, é importante entender três conceitos: ações afirmativas, cotas e discriminação (positiva e negativa). As ações afirmativas são programas que buscam conferir direitos ou recursos a grupos socialmente, economicamente ou historicamente excluídos, oprimidos e invisibilizados. Eles podem garantir uma ampla gama de direitos e visam diferentes estratos da sociedade a depender do problema que intencionam resolver. As cotas são “(...) uma porcentagem ou número fixo de postos disponíveis para serem preenchidos por beneficiários pertencentes a determinado grupo, enquanto a ocupação dos postos ou vagas restantes é decidida de acordo com as formas tradicionais de competição.”. O conceito de discriminação deve ser tomado no sentido de distinção e suas duas formas, a negativa e a positiva, caracterizam as intenções de tal distinção. A positiva busca promover bem-estar a grupos discriminados, enquanto a negativa busca contribuir para a diminuição desse bem-estar. As cotas, portanto, são ações afirmativas de cunho discricionário positivo, uma vez que buscam garantir a populações minorizadas seus direitos e aumentar seu bem-estar.

Em 2012 a presidente Dilma Rousseff assinou a Lei Nº 12.711, a chamada Lei de Cotas. A lei assegurava 50% das vagas em universidades ligadas ao MEC (Ministério da educação) “(...) para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas.” e “(...) estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (um salário-mínimo e meio) per capita.” e também “(...) autodeclarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com deficiência (...)”.

É uma lei importantíssima, que representa uma mudança na história das políticas de equidade no Brasil. Os despossuídos nunca foram o centro das políticas públicas do estado brasileiro e, para as pessoas negras, também despossuídas e miseráveis, qualquer debate de reparação estava aquém do debate público. Se por um lado as políticas oligárquicas e elitistas do estado brasileiro construíam uma estrutura para enriquecer elites brancas, obscurecendo o papel reparador e provedor do estado, por outro, as ideias de embranquecimento e eugenia que pautavam uma ampla parcela da elite intelectual e cultural branca (ver imagem 1) do país relegava aos negros a periferia da periferia, um espaço ao léu de qualquer política reparatória.

Mesmo após a “superação” desses ideais eugênicos, os negros não deixariam de ser ignorados no momento de propor políticas públicas, uma vez que no lugar do mito branco de pureza racial, coloca-se um novo mito: a democracia racial. Ao invés de enxergar o processo de mestiçagem como um instrumento de “redenção” da população brasileira, que se tornaria mais branca a cada geração (a tese eugenista), a integração racial é vista como o pilar da construção da identidade brasileira, sendo celebrada. O problema dessa ideia é que ela ignora qualquer realidade de confronto racial, ignorando o racismo latente da população brasileira, pintando a nação como um local de integração racial. Enquanto é ideal que isso se almeje, a análise das elites simpáticas com a ideia da democracia racial acreditavam que o conflito racial já havia terminado, ou que estava diminuindo. Todos esses mitos, estruturados em um país de elites brancas e latifundiárias que possuíam controle exclusivo da máquina do Estado, impedem a implementação de qualquer medida social e de reparação.

O tom da conversa muda no clima pós redemocratização (1980-90). Com a ascensão de movimentos sociais pelo direito da população negra, um estado de direito em construção, a universalização do voto, um debate público livre e a social democrata Constituição Cidadã, que é um marco para a política social e humanizadora, o estado brasileiro começa a construir políticas públicas para resolver as verdadeiras características formadoras do Brasil: a miséria, a opressão, o elitismo, o racismo e a desigualdade. O presidente-sociólogo Fernando Henrique Cardoso, estudioso da escravidão, deu passos importantes, ainda que insuficientes. Em trabalho conjunto com movimentos negros, promoveu debates e comitês para discutir a escravidão e as políticas afirmativas para compensação. A conferência de Durban, iniciativa das Nações Unidas para discutir o racismo na contemporaneidade, contou com a participação de seu governo e trouxe para o centro do debate público tupiniquim a questão racial no Brasil. Mesmo com a criação de um programa nacional de ações afirmativas em sua gestão, o governo do sociólogo não deu mais passos concretos em torno dessa discussão.

As ações afirmativas começam a ser efetivamente implementadas no começo do século, a partir de 2001. As primeiras universidades foram as estaduais do Rio de Janeiro, UERJ e UENF. Logo após, a UnB implementou ações afirmativas na instituição, fato esse que gerou debates em torno da tal “classificação racial”, que foi um componente da política da universidade para evitar fraudes na hora de se declarar sua etnia. De qualquer forma, essas decisões foram o ponto de partida para outras universidades estaduais e federais implementarem suas próprias políticas nesse caminho. Outro marco nessa via foi a implementação do Fies e do Pro uni e a expansão de campus e universidades federais pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Essas políticas vieram para aumentar a oferta de ensino público superior para uma população em boom demográfico e ao mesmo tempo resolver a falta de estudantes matriculados em redes privadas de ensino. É válido notar que políticas de ação afirmativa nas redes públicas não vieram do governo federal, mas de iniciativas locais e estaduais. Até esse momento (2000-2010), o governo federal tinha propostas para a iniciativa privada, exclusivamente. Em 2012, a Lei de Cotas foi instituída. Por decreto, todas as universidades federais foram obrigadas a possuir ações afirmativas. Desde então, houveram avanços da política em boa parte das universidades brasileiras.

O debate em relação ao resultado das cotas é moderadamente promissor. Observando os dados, consegue-se enxergar um aumento no número de estudantes vindos de classes mais pobres. Os 40% mais pobres ocupam 16% das vagas. Um número alto, colocado em perspectiva histórica. Outras parcelas fora desses 40% mais pobres, mas também fora dos 20% mais ricos, cresceram de forma contundente, ocupando 40%-50% das vagas, o que também é positivo, uma vez que eles não chegavam nem aos 30% em 2001. (ver gráfico 1) Estudantes negros, pardos e indígenas são 40% do corpo discente (ver gráfico 2). Um número bastante promissor, tendo em vista que há 21 anos atrás não chegavam nem aos 25%. A Lei de Cotas, em conjunto com a expansão de campos universitários no país e uma economia estável, conseguiu dar um primeiro passo importantíssimo na inclusão de pessoas mais pobres e pessoas pretas no ensino superior.

A crise econômica iniciada na gestão irresponsável de Dilma Rousseff culminou, no governo Temer, em cortes orçamentários na educação, que se aprofundaram no governo Bolsonaro. Esses cortes foram, em parte, responsáveis pela diminuição da política de universalização da educação superior. Sem estabilidade fiscal e monetária, não existe possibilidade de manter uma política tão ampla quanto a que foi promovida pelos governos Lula-Dilma.


Anexos:

Imagem 1

"A Redenção de Cam" Autor: Modesto Brocos Data: 1895 Técnica: óleo sobre tela. Dimensões: 199 cm por 166 cm Localização: Museu nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro.

A tela, de Modesto Brocos, mostra o que parece ser a entrada de uma casa, ou seu quintal, e quatro figuras descansando: uma mulher preta, um homem branco, uma mulher negra e um bebê branco. A criança representa Cam, personagem bíblico amaldiçoado, tendo sua redenção. A maldição aqui é entendida como a pele preta, e a redenção se daria pelo fato de que, através da miscigenação entre a "raça" branca e a "raça" preta, a população brasileira iria se embranquecer. Esse quadro revela o racismo e a eugenia das elites culturais. (Para um exame crítico da obra, ver a análise de Lilia Moritz Schwarz)

Gráfico 1


Gráfico produzido por Adriano Souza Senkevics, pesquisador do Inep e doutorando na USP. O gráfico pode ser encontrado em um artigo de Adriano sobre a expansão universitária no Brasil.







Gráfico 2


Este gráfico também pode ser encontrado no artigo citado acima.












Fontes:

A elucidação de conceitos no segundo parágrafo e a história da implementação das políticas afirmativas em parágrafos subsequentes se baseia nesta pesquisa: FERES JÚNIOR, J., CAMPOS, L.A., DAFLON, V.T., and VENTURINI, A.C. Ação afirmativa: conceito, história e debates [online]. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2018, 190 p. Sociedade e política collection.

Sobre o estado dos debates raciais brasileiros da primeira república adiante, recomenda-se o artigo de Felipe Botelho Corrêa, De ressentido a visionário, que conta a história de Lima Barreto, autor negro que viveu no limiar do século 20. No artigo, cartas entre intelectuais conceituados do Brasil à época demonstram o teor eugenista que impregnava a elite intelectual do país. Também lê-se sobre a interpretação de autores da metade do século em relação à obra de Lima, evidenciando o mito da democracia racial citado neste texto. Para uma melhor interpretação deste mito, recomenda-se a pequena aula da historiadora Lilia Moritz Schwarz, A ladainha da democracia racial.

Sobre as evidências que permeiam o debate das Ações Afirmativas, ver o artigo citado no pequeno texto que acompanha o Gráfico 1.






 
 
 

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