Relatos pessoais sobre ser lgbt
- Jovem Político
- 4 de jul. de 2022
- 5 min de leitura
Relato 1
Não sei bem como começar esse relato, talvez porque minha experiência não teve exatamente um caminho claro ou, menos ainda, direto - como ocorre com a maioria de nós na verdade. Sei do que desejo e do que posso, mas do caminho até aqui pouco se revela com igual facilidade - e talvez aí, bem nessa tortuosidade, resida a potência de um relato como esse.
Bizarro como ninguém se descobre heterossexual, ou cisgênero - certas expressões são dadas como fatos óbvios e trivais - impostos pela cultura e pelas primeiras pessoas com as quais temos contatos. Assim, ser LGBTQIA+ demanda, antes de tudo, o saber do que “é” e do que nos é ensinado como o “deveria ser”; perceber o que se sente e o que nos é dito que deveríamos sentir no lugar. Demanda então, logo em seguida, perceber essa discrepância: “calma… eu posso sentir isso?”. E, por fim, a mais excruciante demanda é a de aceitação. Não a alheia (apesar de sua importância), mas a nossa própria.
Não há como explicar a dificuldade da terceira demanda para quem nunca a sentiu. É um processo dos mais angustiantes de descobrir um sentimento até então evitado, tido como proibido, e assumi-lo como real e digno de existência. Em partes por isso - e em outras pelo medo das consequências e da violência - que muitos nunca satisfazem a última demanda e se culpam num processo sem fim e se escondem a todo custo. Relatos como esse são importantes - e o próprio mês do orgulho - porque alguma pessoa vai dormir hoje pensando que estaria melhor morta do que vivendo o que sente.
A minha primeira demanda se impôs então quando tinha 15 anos mais ou menos: no primeiro ano do ensino médio havia um garoto diferente. Não só em como ele se destacava dos outros, mas também no que ele me fazia sentir. “Okay, ele é realmente bem bonito, mas será que…?”. E assim a gente descobre pouco a pouco que o desejo se impõe independentemente se sabemos ou não lidar com ele. A segunda demanda se apresenta então “será que eu posso gostar dele assim?” . Passei pouco a pouco de um simples “hétero” para “existe apenas um homem que eu beijaria nessa terra”, e aquela criatura foi a escolhida. Até hoje não sei exatamente o que ele tinha - apesar de apostar que minha terapeuta teria uma opinião bem formada sobre o assunto - mas acabei não fazendo nada sobre isso durante 2 anos (em que fomos apenas amigos). Até que, após ele voltar de viagem, marcamos de nos encontrar para tirar a conversa atrasada e ele teve a atitude de colocar em palavras o que a tensão presa no ar implorava: “eu quero muito te beijar agora” - a última demanda surgia.
Peço perdão, mas não vou me prolongar nesse ponto. Apesar disso não ser uma fanfic do wattpad, acredito na capacidade de quem estiver lendo de imaginar a minha resposta (risos). E de “apenas um homem”, acabei achando “apenas dois” e assim por diante. Ser bi me cabe muito bem.
Relato 2
É muito complicado escrever um relato sobre a experiência bissexual, afinal, ela permeia minha vida desde sempre. É isso. Eu sempre soube. Não houve um momento de grande descoberta, um lindo dia em que beijei uma menina e minha vida nunca mais foi a mesma ou algo do tipo. Essa transição na verdade aconteceu no momento em que eu parei de ser lida como hétero.
Aos 14 anos eu já tinha certeza que eu me atraía por meninas, e talvez por alguma bifobia internalizada, eu me entendia como lésbica. Inclusive, eu era obcecada por rótulos, eu queria desesperadamente me identificar com algo, caber em uma caixinha seja qual fosse ela. Hoje olho para essa época com um pouco de pena de mim mesma. Tudo que eu precisava era entender que eu sempre fui e sempre vou ser muito mais que isso.
Eu achava impossível amar mulheres. Na verdade, eu achava isso masculino demais para mim, logo, minha feminilidade estava em jogo e eu sentia que eu precisava me comportar de uma maneira “masculina” - com masculina quero dizer ter atitudes babacas, meio tóxicas e levemente misóginas, afinal, essa era a imagem que eu tinha dos homens do meu convívio - eu precisaria parar de performar feminilidade, assim as mulheres me amariam de volta.
Cortei meu cabelo, mudei meu jeito de me vestir e mesmo assim eu não estava satisfeita. Em pouco tempo percebi que performar ou não feminilidade não tem muito a ver com o amor. Ou talvez tivesse, eu achava essas meninas muito bonitas e quase ameaçadoras, eu queria ter elas e não ser elas (o clássico questionamento bissexual aqui).
No mesmo ano me apaixonei por uma menina, aquelas paixões completamente sem pé nem cabeça, que te consomem em todos os níveis e quando acabam não resta mais nada, nem você mesmo. Foi aí que eu descobri que a violência mora em todos os lugares.
O preconceito cria feridas muito profundas e difíceis de curar, e no meu caso ele veio de todos os lados e ao mesmo tempo. Em casa, na escola e nas ruas eu sentia que as pessoas desejavam que eu não existisse ou que pelo menos eu chamasse menos atenção, que eu passasse despercebida, invisível.
Às vezes eu queria ser invisível, assim eu poderia ter alguma paz e parar de ser reduzida a um único setor da minha vida. Eu sentia constantemente que eu tinha parado de existir de certa forma, porque a minha vida inteira girava em torno de amar uma menina. A paixão em si já nos leva a pensar isso, viver em função do amor. Mas nesse caso, não era só a paixão. Eu fui arrancada do armário pela coordenação da minha antiga escola e a partir desse momento eu não era mais nada além de lésbica.
Eu fui criada num ambiente extremamente conservador, minhas noções de moralidade eram pautadas em crenças meio transcendentais que hoje vejo que não fazem muito sentido, mas que me trouxeram muito sofrimento por não seguir o que estava dentro do esperado. Além disso, na escola meus colegas de classe faziam da minha vida um inferno, mas isso é o normal e esperado de adolescentes classe média-alta de escola particular.
Dentro dessa mesma escola, apesar dos pesares, eu pude ter algum senso de comunidade. Fiz amigos que também eram LGBTQIA +, e creio que isso foi importantíssimo para todos nós. Nossa convivência era de muita compreensão e compartilhamento das dores do dia-a-dia, além dos conflitos básicos de adolescente. O grupo de amigos não continua unido, mas nele conheci meu atual namorado, que coincidentemente também é bi. Sim a lésbica tem um namorado, que engraçado.
Até chegar nisso foram uns dois anos de análise e muitas crises existenciais. Ser bissexual para mim hoje em dia é um rótulo que não me limita, e por isso me agrada. Eu não me identificava como bissexual desde sempre, e o motivo é extenso demais, mas a grande verdade é que o desespero por encontrar um rótulo na verdade é um desepero por identificação. É bom demais olhar para alguém e se ver, perceber que ser assim não é o fim do mundo. Fico feliz demais em ver que a próxima geração muito provavelmente vai ter mais facilidade nesse processo.
Enfim, acredito que não tenha nada melhor do que se sentir à vontade para experimentar a vida. O ser humano é muito mais complexo do que qualquer letrinha da sigla. Por isso, para mim a luta é para que todos possam viver da forma que quiserem, para que assim, um dia não faça o menor sentido eu vir aqui falar sobre ser bissexual, até porque isso será problema meu e de mais ninguém.
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