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Da historiografia à iconoclastia: quem foi o bandeirante que homenageamos?

  • Foto do escritor: Antonio Motyole
    Antonio Motyole
  • 13 de ago. de 2021
  • 5 min de leitura

Antes de começar, preciso que você faça algo. Pare por um momento e tente se lembrar das estátuas, dos nomes de ruas e avenidas pertos de você... Pensou? Agora, você sabe quem foi essa pessoa? O que ela fez? Por que acharam importante usar o nome dela? Provavelmente não sabemos da maioria, mas eu, por exemplo, moro perto das rodovias Raposo Tavares e Presidente Castello Branco – a intersecção de um bandeirante e um ditador; talvez você seja mais azarado e more de frente para uma estátua de 13 metros de um certo bandeirante que, recentemente, foi incendiada. Estamos cercados de monumentos e, devido ao incêndio que não terminará na estátua de Borba Gato, precisamos falar sobre memória e a falsa imutabilidade dessa história que contamos. Primeiramente, tratando-se da História, precisamos entender que ela não é única e homogênea, mas sim um campo de debate e estudo do passado, cujas representações são objetos de disputas constantes pela memória; a qual, no caso, está mais relacionada com o que contamos, juntamente com o conjunto de significados de eventos históricos, do que uma cultura carrega em si. Por isso, como explica o Coletivo História a Contrapelo, existe uma confusão entre disputa pela memória e apagamento histórico; mas discutir como o passado deveria ser contado não é mudá-lo, muito menos apagá-lo. A mudança em tais representações é sempre uma forma de dar sequência à história, visto que a memória também evidencia elementos externos a si, como os valores e visões da época em que foi construída. Nesse sentido, a iconoclastia foi fundamental enquanto gesto simbólico da mudança social, a derruba do velho e do opressivo é uma ferramenta memorial conhecida. Tomemos alguns exemplos: em 1776, estadunidenses derrubaram a estátua do Rei Jorge III, após a leitura da Declaração de Independência, e a derreteram para forjar milhares de balas. Talvez mais notavelmente, em 1789, os franceses invadiram a Bastilha, um símbolo do abuso do poder monárquico, sendo que hoje existe apenas um monumento no lugar do antigo castelo. Tais derrubadas não apagaram a história, visto que existem outras formas de saber como as coroas Francesa e Inglesa ou os monumentos eram. Voltando ao presente, no dia 24 de julho, o grupo Revolução Periférica ateou fogo na estátua do bandeirante Borba Gato, afirmando que ele contribuiu ativamente para o genocídio da população indígena. O monumento já havia sido alvo de um banho de tinta e ameaças de derrubada, mas agora o debate relacionado às estátuas esquentou, depois de protestos parecidos em outros países, contendo a derrubada de figuras notoriamente problemáticas. A queima de Borba Gato retomou não só debates sobre a própria pessoa, mas também sobre a historiografia paulista e a construção do mito do bandeirante. Reforço que, diferentemente do incêndio na Cinemateca, o de uma estátua jamais deve ser tratado como “apagamento histórico”. Por um lado, houve a defesa do ato, como pelo professor da USP Vladimir Safatle, em seu artigo “Do direito inalienável de derrubar estátuas”, no qual trata da celebração dos bandeirantes enquanto afirmação de um desenvolvimento pautado em violências históricas de “populações que foram submetidas à escravidão, ao extermínio e ao roubo”. Houve, entretanto, quem discordou da queima, como o jornalista especialista em história nacional Eduardo Bueno, que afirmou: “Queimaram a estátua errada”. Não contestando a violência brutal cometida, ele tratou apenas da história pessoal de Borba Gato, que não se envolveu com caçadas e escravização de indígenas. Contando a vida desse personagem em seu canal do Youtube, Eduardo passa pelo sogro, Fernão Dias (esse sim, envolvido com o genocídio indígena) e a fuga do bandeirante ao interior, onde viveu entre índios por décadas. Mas, se ele realmente não foi o que acusam... queimaram a estátua errada? A questão é que mesmo havendo uma possível inocência individual, o que hoje chamamos de “bandeirante” foi de fato responsável por assassinatos, escravização e estupros; a imagem de desbravador heroico só veio depois.

Essa recuperação da imagem dos bandeirantes começou com o movimento republicano em São Paulo (formado por produtores de café descontentes) que ganhou força a partir de 1870. O movimento baseou-se grandemente nos Estados Unidos para defender reformas liberais de um capitalismo agrário moderno. Diante dessa demanda de uma utopia liberal, que, na verdade, era excludente e autoritária, surgiu a narrativa de um “caráter paulista”. Como conta o historiador Danilo Ferretti em “O uso político do passado bandeirante” (2008): “o ‘povo paulista’ seria, antes de tudo, uma avis rara, uma ‘exceção de progresso’ em meio aos demais brasileiros (com destaque para os ‘nortistas’), vistos como apáticos e dependentes do governo”. Ao mesmo tempo, iniciou-se a reavaliação do bandeirante que, desde 1830, era tido pela Corte como “um famigerado caçador de índios, síntese dos piores vícios do colonizador”. Entretanto, o trabalho completo só se deu com a criação do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (1894), transformando a contra-história em história oficial e enraizando as novas instituições republicanas. Um exemplo claro foi do autor e político Washington Luís, a quem o bandeirante era “mais do que herói construtor do território, destacava-se por possuir um espírito livre e até democrático, representado tanto na insubmissão ao poder da Coroa Portuguesa quanto na participação ativa nas câmaras municipais”. Deu-se o início de uma política identitária de “culto ao passado paulista”. Talvez seja importante ainda destacar que, apesar das representações atuais focarem-se nas lideranças europeias e figuras brancas, o antropólogo Darcy Ribeiro ressalta que a expansão do domínio português terra adentro, na constituição do Brasil, é obra dos brasilíndios ou mamelucos. Darcy descreve os mamelucos (primeira geração filha de europeus e ameríndios) como vítimas de uma rejeição drástica: a dos pais europeus e poligâmicos, que os viam como impuros filhos da terra, mas os integravam às bandeiras, onde muitos fizeram carreira. Tratando ainda dos objetivos: “o que buscavam no fundo dos matos a distâncias abismais [em bandos imensos de mamelucos e seus cativos] era a única mercadoria que estava a seu alcance: índios para uso próprio e para a venda” após o “desgaste” das tribos locais. A estátua de Borba Gato, com seu semblante pleno, um mosquete e roupas que mais parecem uma armadura, vestimentas impraticáveis ao que fazia, o representam como um herói desbravador, uma figura que deveria nos inspirar. Essas representações não estão lá por acaso, foram construídas para favorecer a elite cafeeira paulista, e hoje estão no centro duma disputa pela memória das populações historicamente violentadas. Tratar do bandeirante como Washington Luís o fez é homenagear valores que não tinham, impostos à custa da brutalidade que realmente cometeram. Talvez digam: “mas era outra época, para eles era normal”, e para tal respondo que isso não impede uma revisão crítica do passado e muito menos um debate sobre qual é a memória da qual devamos nos orgulhar. Só precisamos nos perguntar: a quem serve manter as representações que temos hoje?

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