Desobediência Civil:Do Lollapalooza à força da não violência
- Antonio Motyole
- 10 de mai. de 2022
- 6 min de leitura
Acredite ou não, o primeiro grande evento de oposição ao Bolsonaro esse ano foi... um evento de música? Pois é, você provavelmente viu a disputa envolvendo o festival Lollapalooza: após a cantora Pabllo Vittar levantar uma bandeira com o rosto do ex-presidente Lula no primeiro dia de festival, a resposta não poderia ter sido outra. Por isso mesmo, eu, correspondente semioficial do Jovem Político para festivais de música, fui enviado pela redação para cobrir os acontecimentos do Lolla 2022 e tratar da nossa realidade política no que tange manifestações públicas e o uso da não violência – talvez até gritar um pouco de Fora Bolsonaro no meio do caminho como desobediência civil.
Indo aos fatos: após Pabblo, Marina e outros artistas se manifestarem publicamente contra Bolsonaro, o partido do presidente (PL) acionou o Tribunal Superior Eleitoral contra a organização do evento por suposta propaganda eleitoral irregular do principal candidato nessas eleições. De acordo com os acionistas, tais manifestações estariam violando a legislação eleitoral, que só permite campanha a partir de 16 de agosto. A decisão liminar do ministro Raul Araújo (que já havia negado a retirada de outdoors de Bolsonaro em outra ocasião) determinou então multa de 50 mil reais caso outros artistas se manifestassem politicamente no evento. Aqui, é relevante destacar que ao acionar oTSE, o PL foi claro no pedido: caso qualquer tipo de “propaganda eleitoral irregular – antecipada ou negativa – em favor ou desfavor de qualquer candidato” ocorra, que “a Justiça Eleitoral, em poder de polícia, impeça a continuação do evento”.
E com consequências tão sérias como essa, quem teria coragem de descumprir uma decisão que proibia manifestações em ‘desfavor’ ao presidente...? Todos, ou pelo menos a maioria dos artistas brasileiros. Dos shows que tive o prazer de ver, também tive o prazer de me manifestar em desfavor do 2o pré-candidato nas intenções de voto. A tentativa de censura só poderia, é claro, ser respondida através da ridicularização e desobediência que a situação pede.
Anitta, no Instagram e no Twitter, foi direta: “50 mil? Tudo bem, uma bolsa a menos”, além de se oferecer a pagar a multa para os amigos que quisessem se manifestar. Djonga puxou o ‘fora Bolsonaro’ no palco lotado que esperava Martin Garrix com: “dedo do meio para o alto, pensa numa pessoa que vocês odeiam muito. Quem? Não pode falar? Então vamos falar”. Além disso, cantores como Emicida e Jão também focaram suas falas na importância dos jovens de 16 a 18 anos tirarem o título de eleitor (que pode ser feito até o dia 4 de maio).
No fim, a própria ação foi invalida pois o CNPJ citado estava errado e Bolsonaro acabou por pedir que a removessem “furiosamente”. Mas bem, o que isso nos ensina? Além de que a tentativa de que tentar proibir a expressão coletiva de indignação resulta num efeito amplificador...
O ato político assumido por partes do público e dos artistas de descumprir uma ordem explícita de um ministro de um Tribunal superior se encaixa numa categoria de condutas conhecidas como Desobediência Civil. Em essência, ela é uma resposta à pergunta: “o que um cidadão honesto deveria fazer ao discordar, por exemplo, de: uma lei, uma estrutura ou um presidente?”
A desobediência civil foi popularizada pelo filósofo e escritor estadunidense Henry Thoreau em um ensaio homônimo no contexto da guerra dos EUA contra o México e de políticas que mantinham a escravidão sob a presidência de Polk. Em seu texto, Thoreau buscou redistribuir o prestígio colocado na obediência cega para o pensamento independente: o que marcaria um nobre cidadão da república, um verdadeiro estadunidense, não seria que eles respeitosamente calasse a boca, mas que pensasse por si mesmo todos os dias da duração de um governo. Como resposta às políticas das quais discordava, o pensador passou a não pagar seus impostos, resultando em sua prisão – não que ele fosse especialmente contra taxação, mas por essa ser uma das possíveis práticas de não violência.
“Todas as máquinas têm seu atrito”, admitiu Thoreau, mas quando a injustiça é muito grande, você deve “deixar sua vida ser um contra atrito para parar a máquina”. Ainda detido, escreveu: “Sob um governo que aprisiona injustamente, o verdadeiro lugar para um homem justo é uma prisão.”
A questão da manifestação política não é nova. Para nós hoje, parece óbvio e até simplista nos voltar ao argumento da liberdade de expressão como direito e caminho possibilitador da crítica. Mas e em outros tempos? Em lugares em que se opor à ideologia dominante é um caminho certeiro à prisão? À violência?
Como coloca a filósofa Judith Butler em “A Força da não violência”(2020): “Sob tais condições, o exercício dos direitos de reunião é chamado de manifestação de "terrorismo", o que, por sua vez, chama o censor estatal com golpes de cacetete e pulverizações pela polícia, rescisão de emprego, detenção por tempo indeterminado, prisão e exílio.” Efetivamente, o que acontece na verdade é que a crítica, a dissidência e a desobediência civil são interpretadas como ataques à nação, ao estado, à própria humanidade; uma acusação que surge tomando o debate como uma guerra em si e, atos de não violência como uma permutação da própria violência. Para ela: “A desobediência civil pode parecer uma simples “derrogação”, mas torna público um julgamento de que um sistema legal não é justo. Requer o exercício de uma sentença extralegal. Violar a cerca ou o muro projetado para manter as pessoas de fora é precisamente exercer uma reivindicação extralegal de liberdade, uma que o regime jurídico existente falha em prover dentro de seus próprios termos.”
Entre exemplos históricos mais recentes, encontramos o movimento pela independência da Índia, em que Mahatma Gandhi, após estudar na Inglaterra, sofreu pelo racismo da África do Sul e voltou para sua terra natal sob domínio. Buscando a independência, Gandhi liderou protestos de não violência voltados à não cooperação e desobediência com o império inglês, como a marcha do sal (Salt Satyagraha) após sua prisão, em que 78 voluntários andaram 385 quilômetros para quebrar as então leis de taxação do sal e sua produção.
Mais à frente, Martin Luther King Jr. liderou o movimento pelo fim da segregação racial nos Estados Unidos e aprovação do Ato de Direitos Civis. Para as manifestações do movimento, a desobediência às leis de separação de espaços públicos foi fundamental enquanto forma de questionar o absurdo instaurado. Como no caso de St. Augustine, uma cidade central na desobediência do uso de espaços segregados como praias e piscinas. Após tentar entrar no restaurante de um hotel, ser impedido e preso com outras 17 pessoas MLK Jr. organizou o protesto mais importante que levaria à aprovação do Ato de Direitos Civis no senado no dia seguinte. Focando agora no hotel, dois protestadores brancos convidaram cinco pessoas negras para entrar na piscina enquanto 16 rabinos e outros membros se dirigiam em marcha ao local. Numa demonstração desenhada para atrair atenção, primeiramente o dono tentou tirá-los da piscina com uma peneira de piscina e, ao falhar, despejou ácido clorídrico nela. Por fim, enquanto o ato esperava a assinatura do presidente, os “wade-ins” continuaram acontecendo diariamente na cidade até 25 de junho de 1964, em que manifestantes supremacistas atacaram uma marcha pelos direitos civis – uma semana depois, o presidente Johnson assinou a lei.
Nesse sentido, retornamos a Butler ao escrever que tal prática de não violência, a “força da alma” defendida por Gandhi, não pode ser entendida somente como a falta de violência ou recusa de participar nela, mas como inseparável de uma postura incarnada sobre formas de viver e persistir, precisamente sob condições em que atacam a própria persistência. É uma postura de asserção da vida feita por fala, gesto e ação. De modo que, continuar a existir e perseguir agressivamente formas de não violência, mesmo que na aflição das relações sociais, possa ser a derrota final do poder violento.
Não pense entretanto que estou igualando a desobediência civil do Lollapalooza com um ato histórico de luta por igualdade social, estou na verdade pensando e discutindo aplicações de uma prática presente e fundante de manifestações públicas para mudança social. Num ano como esse, com uma eleição como essa, práticas de resistência não podem nos faltar. *Partindo de Thoreau, ao argumentar que o cidadão nunca deve simplesmente "renunciar sua consciência à legislação", até Butler:
“A prática de "mancar" diante do poder político é, por um lado, uma postura passiva e acredita- se que pertença à tradição da resistência passiva; e, ao mesmo tempo, é uma maneira deliberada de expor o corpo ao poder policial, de entrar no campo da violência e de exercer uma forma inflexível e incorporada de agência política. Requer sofrimento, sim, mas com o objetivo de transformar a si mesmo e a realidade social.”*
Fontes:
LOLLAPALOOZA VIRA FESTIVAL ANTIBOLSONARO – Meteoro Brasil
https://youtu.be/Gya3zZoilHA
Bolsonaro, Putin e título eleitoral: as manifestações políticas no Lollapalooza 2022 – G1
https://g1.globo.com/pop-arte/musica/lollapalooza/2022/noticia/2022/03/28/bolsonaro-putin-e-titulo- eleitoral-as-manifestacoes-politicas-no-lollapalooza-2022.ghtml
Bolsonaro ordena que PL retire ação contra Lollapalooza e estaria furioso com o partido – Folhahttps://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2022/03/bolsonaro-ordena-que-pl-retire- acao-contra-lollapalooza-e-estaria-furioso-com-o-partido.shtml
Thoreau and civil desobedience – The School of Life
https://youtu.be/gugnXTN6-D4
The forgotten “wade-ins” that transformed the US – Vox: Lost Chapter
https://youtu.be/Wk0872XhnHk
The Force of Non-Violence – Judith Butler
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