Educação sexual e o mito da abstinência
- Antonio Motyole
- 7 de dez. de 2021
- 3 min de leitura
Muito se fala da liberação sexual a partir de meados do século XX, ao ponto em que, hoje, é como se vivêssemos em seu ápice: podemos falar abertamente sobre sexo, identidade de gênero, prevenção de ISTs e afins - é quase como se vivemos na série Sex Education da Netflix. Mas não é bem assim. Mesmo com avanços sociais consideráveis quanto a esses antigos tabus, o ensino e o debate acerca desses temas seguem sendo ativamente boicotados e cerceados por pseudomoralismos e ignorâncias – apesar dos claros benefícios que trazem.
Comecemos por defini-la: a educação sexual, para a ONU-UNAIDS, é um programa de ensino sobre aspectos da sexualidade com objetivo de empoderar crianças e jovens para “vivenciar sua saúde, bem-estar e dignidade; desenvolver relacionamentos sociais e sexuais respeitos; considerar como suas escolhas afetam o bem-estar próprio e dos outros; entender e garantir a proteção de seus direitos durante a vida”. Vale ressaltar que ela também consta na Base Nacional Curricular Comum (BNCC).
Indo contra esses princípios, o próprio Vereador da República (Bolsonaro) já afirmou que a educação sexual deve ser feita pelos pais e incentivou que esses rasgassem páginas sobre educação sexual (como usar camisinha e fazer higiene íntima) da Caderneta de Saúde da Adolescente. Similarmente, a Ministra ‘da Mulher, Família e Direitos Humanos’ já anunciou um programa de “estímulo à abstinência sexual” nas escolas como método de “preservação sexual”. Além, é claro, do próprio ex-astrólogo oficial do governo, Olavo de Carvalho, que afirmou: “quanto mais educação sexual, mais putaria nas escolas”.
Aqui, esse é um dos temas cuja posição contrária eu genuinamente não entendo, então me perdoe, você que está lendo, por não explicar a motivação por trás dela – talvez só Freud explique. O que farei sim é explicar por que, além de erradas, as falas e posicionamentos desse tipo são terrivelmente danosos.
Primeiramente, a sexualidade não deve de forma alguma ser um assunto tratado apenas no âmbito familiar. De acordo com o Anuário de Segurança Pública de 2021, 77% das vítimas de estupro de 0 a 19 anos possuíam até 13 anos e, de acordo com O Globo (2018), em 78,6% dos casos, a casa é a cena do crime, conhecidos e amigos da família são os responsáveis em 30% e pais e padrastos vêm logo atrás, com 12% cada. Assim, é óbvio que manter esse assunto sobre o controle muitas vezes rígido da família serve apenas para criar uma barreira no diálogo e na denúncia desses crimes, barreira essa que é ultrapassada no âmbito escolar.
Além disso, entre 2007 e 2017, a notificação de casos de HIV de pessoas de 15 a 24 anos aumentou aproximadamente a 700%, uma nova epidemia de acordo com o diretor da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids. Atrelado a isso, o Brasil também tem cerca de 19 mil nascimentos ao ano de mães de 10 a 24 anos de acordo com a ONU-UNFPA. Para reduzir tais números, a proposta da abstinência não poderia ser mais falha: tal “preservação sexual” possui correlação positiva com a maternidade precoce de acordo com a Sociedade para Saúde e Medicina Adolescente.
É quase como se... quando as pessoas são educadas através do constrangimento, sem poder falar livremente sobre um assunto, elas estarão expostas a mais riscos – quem diria?
Ainda, em uma meta-análise de 224 estudos da Universidade de Exeter (Denford, 2016) sobre programas de prevenção do HIV e da gravidez, a conclusão foi: “intervenções focadas na abstinência são ineficazes para promover mudanças positivas no comportamento sexual. Em contraste, intervenções abrangentes, [...] e clínicas nas escolas demonstraram ser efetivas em melhorar o conhecimento e mudar atitudes”.
Finalmente, a educação sexual também teria papel fundamental em diminuir preconceitos e a violência contra a população LGBTQIA+, violência infantil essa brevemente tratada no artigo “Quem defende o direito de impor?” aqui no Jovem Político.
Em suma, apesar de ainda haver um tabu e certa tentativa falsa de controle desses assuntos através de métodos cuja ineficiência já é cientificamente comprovada, a educação sexual segue essencial à formação cidadã, diminuição da violência sexual, de infeções sexualmente transmissíveis, gravidez a adolescência e, até mesmo, violência de gênero e LGBTfobia. Ser contrário à sua aplicação democrática e desprovida de proibições do que pode ser falado não passa de um projeto factualmente ignorante e contraproducente – a menos é claro que haja um projeto para manter desigualdades sociais vigentes, o que não é muito comum por aqui, não é mesmo?
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