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ESCOLAS CÍVICO-MILITARES: DISCIPLINA AO CUSTO DA AUTONOMIA?

  • Foto do escritor: Jovem Político
    Jovem Político
  • 1 de fev. de 2022
  • 5 min de leitura

Ao longo dos últimos anos, tem havido um aumento radical na quantidade de Escolas Cívico-Militares (Ecim) ao redor do país, o que é, no mínimo, preocupante.

Segundo o site oficial do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim)², essas são instituições educacionais da rede pública que passam a ser geridas em parceria com os militares. Assim, seguindo diretrizes específicas, a escola resulta de um esforço mútuo entre os civis da comunidade escolar e as Forças Armadas. O Documento de Diretrizes oficial das Ecim² afirma que devem prezar pela democracia e por valores como a preservação do meio ambiente, entre outros que constituiriam o aluno como cidadão. Nesse sentido, por que seria importante haver o envolvimento militar em escolas que prezam pelo civismo?

O grande porém do programa, como em muitas outras situações no Brasil, é o fato da teoria não se dar por completo na prática. Verdadeiros “mini quartéis”, essas escolas se constituem quase como um exército de alunos, regidos sob comandos estritos que envolvem, muitas vezes, o uso da violência física³ como ferramenta de punição.

A própria criação dessas instituições parte de um pressuposto errôneo: a ideia de que o sistema educacional militar é melhor, devido ao desempenho dos colégios militares no Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica). Segundo um estudo realizado na Universidade Federal do Ceará (UFC), o sucesso dos alunos de colégios militares se dá não pelo projeto pedagógico destas instituições, mas ao fato de a grande maioria deles pertencer a famílias estáveis e já serem bons alunos antes mesmo de entrarem nessas instituições. Assim, estando em uma posição privilegiada, os estudantes têm acesso à educação de qualidade que os permite passar pelo exigente processo seletivo desses colégios, bem como arcar com os custos.

O próprio objetivo central da Ecim esconde uma parcela da sociedade. Com o foco em aumentar as notas do Ideb, o programa pode levar a práticas perigosas, tais como a exclusão de alunos com deficiência, que diminuiriam o índice da escola por enfrentarem mais dificuldades do que os demais no que diz respeito à aprendizagem. Apesar da inclusão de alunos deficientes estar prevista no documento oficial do programa, mais uma vez, a teoria difere da prática.

Além disso, o objetivo de aumentar a posição no índice abre brecha para a perpetuação da desvalorização de disciplinas como Artes, Sociologia e Filosofia, pouco importantes nos testes, que supervalorizam matemática e português. Dada a importância de matérias reflexivas e expressivas, as escolas cívico-militares reforçam ainda mais um sistema educacional problemático onde a educação e desenvolvimento do aluno é o de menos.

Um dos principais argumentos a favor desse modelo “pedagógico” é a ideia de que, com a disciplina militarizada, chegaria a um fim a violência nas escolas. O dicionário Oxford define “militar” como aquilo “relativo à guerra, a soldado e a Exército” e “às forças armadas”. A ironia é, portanto, combater a dita violência com ainda mais violência. Há uma razão para termos horror quando estudamos guerras que envolveram crianças: a violência não pertence à esse mundo. Há também uma razão por trás da disciplina militar: o controle. É somente a partir do momento em que se tem uma massa de pessoas destituídas de pensamento próprio, que dedicam tudo de si mesmas para obedecer a ordens esdrúxulas em silêncio, que é possível levá-las a fazer coisas absurdas.

Essa é a história do exército brasileiro.

E a educação não poderia ser mais diferente.

A Constituição Federal de 1988 diz que “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. A escola é o espaço onde a pessoa se constitui em sua complexidade de sujeito para que possa exercer a sua cidadania. O civil, diferente do militar, é autônomo e independente. O civil constrói o seu próprio caminho dentro da sociedade e não obedece a ordens, confiante de que há alguém acima de si que tome as decisões por ele.

Jean-Paul Sartre, principal representante da corrente existencialista, defendia a ideia de que a vida é composta a partir das escolhas que o indivíduo faz por si mesmo. Práticas como o exército, onde a pessoa se sujeita a ficar sob ordens direcionadas, eram chamadas por ele de “estratégias de má-fé”. A "má-fé" não passa da tentativa desesperada de se livrar da angústia de fazer as próprias escolhas por si mesmo, dado que a escolha tem como efeito colateral uma responsabilidade tremenda.

A criança nasce em um espaço onde ela fica sob a tutela dos demais. O mundo já lhe está dado e os adultos, por estarem aqui a mais tempo, são mais sábios que ela. A escola é o espaço onde isso é desconstruído: aos poucos, ela ganha a autonomia, capaz de pensar de maneira crítica, ou seja, de pensar sem que pensem por ela. As Escolas Cívico-Militares, ao instituir a lógica militar em um momento tão importante da formação humana, prende-se os alunos em um estado interminável de minoridade kantiana, aprendendo desde cedo a serem submissos aos memos ideais morais que irão os controlar para o resto de suas vidas. A Escola de Frankfurt, corrente filosófica alemã da primeira metade do século XX, diria ainda que essa repressão contribui para o ciclo de violência, já que toda essa natureza reprimida pela disciplina viria à tona e transbordaria na forma de ainda mais brutalidade.

A autonomia dos estudantes em uma escola não é uma escolha de acordo com o projeto pedagógico, é uma obrigação da instituição, estabelecida pelo compromisso que esta tem para com a sociedade. Paulo Freire diria também que qualquer educador que não põe isso em prática “transgride os princípios fundamentalmente éticos de nossa existência”.

Como a escola pode cumprir seu papel de ajudar o aluno a se desenvolver se não o reconhece nem respeita em sua própria individualidade? O uso obrigatório os uniformes padronizados, os cortes de cabelo específicos, a limitação no uso de acessórios de beleza e a mais minuciosa vigilância de seus comportamentos são exemplos de como as Escolas Cívico-Militares criam uma massa de alunos guiada por ideais gerais, sem compreender dentro de si os valores adquiridos por cada um. E, nesse caso, estes são valores tradicionais ultrapassados que limitam ainda mais quem se encaixa, como a cis-heteronormatividade compulsória.

Há ainda professores que também alegam preferir esse tipo de instituição por conseguirem desenvolver mais o conteúdo, já que a disciplina dá conta do mau comportamento e demais atitudes por parte dos alunos que “atrapalhariam as aulas”. O problema é que, justamente, de nada adianta o professor ensinar se o aluno não consegue aprender. Não há uma receita que se adapte a todo e qualquer estudante no que diz respeito ao estudo, e impor-lhes uma forma inflexível de viver, como a militar, em nada ajuda. Os alunos desenvolvem um medo ainda maior de demonstrar fraqueza e dúvida e, embora a aula seja mais aprofundada, seu conhecimento não deixa de ser superficial.

Por este motivo, o aluno que diverge dos moldes militares sofre muito mais do que sofreria em outros contextos, especialmente por estar em uma lógica que aumenta a pressão pela perfeição e exige um padrão muitas vezes inalcançável.

A educação básica e as forças armadas são, portanto, aspectos que não podem ser misturados. Dessa forma, escolas cívico-militares são sintomas de uma sociedade essencialmente prejudicial para si mesma. A partir do momento em que se tem a capacidade de juntar duas coisas incombináveis, fica muito evidente a presença de um problema pior do que originalmente se poderia ter imaginado. O fato de um projeto educacional ter partido das Forças Armadas também demonstra o poder desproporcional que essas exercem sobre a sociedade.

Os motivos que levam à criação de um projeto como esse tem potencial para levar à uma reforma do sistema educacional que não agrave a situação ainda mais, promova o acesso ao ensino e permita que os alunos sejam eles mesmos, que não os analise com base em um padrão irreal e não os avalie de forma cruel, aplicando testes similares para realidades desiguais. É somente a partir disso que será possível construir um país menos desigual, onde os direitos humanos sejam respeitados acima de tudo; um país verdadeiramente democrático, pacífico e livre.

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