Limites da liberdade de expressão
- Cecília Pessoa
- 21 de jan. de 2022
- 4 min de leitura
Quando a palavra “censura” vem à tona em uma conversa ou discussão, fica claro que carrega consigo uma conotação negativa. Independente da opinião política, ninguém quer censurado, assim como ninguém quer ser acusado de censura. Ainda assim, proferir frases que disseminem algum tipo de racismo (o que, legalmente, engloba comentários preconceituosos acerca de “origem, raça, sexo, cor, idade”1 e até mesmo orientação sexual2) pode levar a penas de até cinco anos de reclusão.
Para além da lei, muitas figuras públicas vêm sendo canceladas nas redes sociais graças aos pontos de vista que defendem; John Stuart Mill, influente filósofo do século XIX considerado por muitos o fundador do liberalismo, acreditava que o que mais ameaça a liberdade de expressão em uma democracia é, não o governo, mas a “tirania social”, isto é, os próprios cidadãos.3
De forma geral, a maior parte da defesa contra a regulação excessiva da liberdade de expressão pode ser resumida na célebre frase do pensador francês Voltaire: “Não concordo com o que dizes, mas defendo até a morte o direito de o dizeres”.
Em termos da defesa da liberdade de expressão, Mill era um extremista. Em um de seus livros, “On liberty” (1859), declarou que “(...) deve existir a mais plena liberdade de proferir e discutir, por uma questão de convicção ética, qualquer doutrina, por mais imoral que possa ser considerada” (tradução livre)4. Para o autor, tal liberdade é necessária uma vez que é preciso considerar todos os pontos de vista para encontrar a verdade. Mill, porém, estabeleceu uma teorizou uma exceção, o “the harm principle”: o discurso deve ser limitado pelo governo caso as palavras proferidas levem diretamente a ações que prejudiquem o outro.
No mesmo livro, Mill dá o exemplo do negociante de milho: enquanto é permitido dizer que este rouba comida dos pobres e os deixa morrer de fome em uma discussão, não se pode dizê-lo para uma multidão armada e furiosa que esteja em frente à sua casa, uma vez que as palavras, neste caso, levariam à morte do negociador.5
Brian Leiter, filósofo político da Universidade de Chicago, defende um ponto de vista que anularia o conceito de liberdade de expressão na esfera pública6. Ele é contra a ideia de que a liberdade de expressão é inerentemente boa para a sociedade. Um dos argumentos que refuta em seu trabalho, comummente associado à Mill, é a ideia de que a liberdade de expressão abre as portas para a verdade. Leiter reitera, porém, que o próprio Mill declarou que “As pessoas devem ser educadas e maduras” para que este objetivo seja alcançado.
O grande exemplo dado pelo autor é o sistema judicial, que, embora tenha como principal objetivo alcançar a verdade, não é permitido que qualquer um dê sua opinião sobre os casos. Em uma entrevista à Vox, ele afirmou que “[A real questão] é sobre o porque de termos um sistema político e econômico que torna impossível que regulemos todas as más coisas sobre expressão de uma forma confiável”.7
No Brasil atual, a liberdade de expressão é garantida pela Constituição Federal: “é livre a manifestação do pensamento” (artigo 5, item IV) e “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. (...) É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística” (artigo 220).
Em um artigo para o site da Faculdade de Direito da USP8, o professor associado de Direito Penal da mesma, Pierpaolo Cruz Bottini esclarece que, em nosso país, temos o direito de expressar nossas ideias e opiniões, mesmo que para demonstrarmo-nos contra tal liberdade. Como exemplo, ele cita uma fala do ex-ministro do STF Pedro Chaves que, em 1963, no julgamento de um jornalista que vazou informações das Forças Armadas, declarou: “Nós temos sofrido, sr. presidente, os desmandos da imprensa brasileira, imprensa nem sempre orientada para o bem do país, imprensa que não respeita nem a dignidade alheia, pois nela militam indivíduos que se arrogam o título de jornalistas e que não passam de hienas da reputação dos outros. Mas tudo isso é preferível a uma imprensa amordaçada, a uma imprensa presa, a uma imprensa vilipendiada”.
O advogado, porém, deixa claro que a liberdade de expressão é limitada quando entra em conflito com outros direitos garantidos pela Constituição, como a honra, a intimidade ou a vida privada de terceiros. Dessa forma, a liberdade de expressão não defende aquele viola a dignidade do outro, embora pessoas públicas e autoridades sejam exceção. Também fica proibida a expressão de ameaças e discursos que incitam a violência, o crime e o preconceito, corroborando com a teoria de Mill.
Bottini afirma: “Por mais paradoxal que seja, para preservar a tolerância é preciso ser intolerante com aqueles que propalam o fim das liberdades públicas pela violência”. Por fim, cita o filósofo Karl Popper: “[É necessário] exigir, em nome da tolerância, o direito de não tolerar os intolerantes [do contrário] os tolerantes serão destruídos e a própria tolerância com eles”.
O debate acerca dos limites da liberdade de expressão nunca se esgotará, uma vez que a humanidade nunca estará em pleno consenso sobre o que é considerado aceitável e o que não é.
Essas próprias noções não são estáticas: seja dentre gerações ou até mesmo dentro de uma única vida pessoas que partilham da mesma cultura podem mudar de opinião a respeito do que consideram ético e moral. Em regimes ditatoriais, as leis que restringem a liberdade de expressão costumam ser muito numerosas, restringindo milhares de debates além deste próprio. Tudo isso só evidencia a importância do debate: ao restringir a liberdade de expressão, um regime ditatorial assume que a palavra por si só seria capaz de derrubá-lo.
Ao afirmar que o homem é um animal político, Aristóteles ressaltava a quintessência da linguagem como aquilo diferencia o humano dos demais seres vivos, e que, portanto, permite o debate. É através das discussões que nós nos fazemos humanos, e o que seriam das discussões sem a liberdade de expressão?
1 https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/direito-facil/edicao- semanal/lei-do-racismo
2 https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/09/30/homofobia-entenda-situacoes-que-configuram- crime-e-quais-as-penas.ghtml
3 https://www.theatlantic.com/politics/archive/2017/12/two-concepts-of-freedom-of-speech/546791/ 4 No original, “there ought to exist the fullest liberty of professing and discussing, as a matter of ethical conviction, any doctrine, however immoral it might be considered;” https://www.google.com.br/books/edition/On_Liberty/7DcoAAAAYAAJ?hl=pt-BR&gbpv=0
5 https://www.youtube.com/watch?v=GgljoDujt38
6 https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2450866
8 https://direito.usp.br/noticia/4bdc11296800-os-limites-a-liberdade-de-expressao-
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