Neoliberalismo e Biopolítica: a inoculação do sofrimento enquanto fator de produtividade
- Antonio Motyole
- 10 de out. de 2021
- 6 min de leitura
Deixe-me adivinhar: você... está cansada(o), né? A verdade é que, para além da pandemia, todos nós estamos, pois é assim que devemos estar. Uso “dever”, porque é exatamente a esse estado que somos involuntariamente levadas(os): o de produção máxima ao custo do bem-estar. Isto é, o atual sistema sócio-psico-econômico não só visa a uma determinada quantidade de sofrimento enquanto fator decisivo de produtividade, como também funciona ideologicamente de forma a produzir sujeitos que busquem tal aflição voluntariamente. Em outras palavras, o Neoliberalismo, considerado nas pesquisas de que tratarei do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP (Latefisp), coordenado por Vladimir Safatle, Nelson da Silva Júnior e Christian Dunker, vai além de uma doutrina econômica, pois é também uma matriz de produção discursiva, ao passo que cria e determina certas formas de estar no mundo, e age, em sua face principal, como gestão do sofrimento psíquico. Sofrimento que encontrou seu ápice na falsa díade “economia ou saúde” da pandemia. Numa breve genealogia necessária, o Neoliberalismo nasce em 1938 no Colóquio Walter Lippmann em uma reinvenção do liberalismo frente às doutrinas mais intervencionistas, como o Keynesianismo. Entre suas novidades, Safatle destaca em “A economia é a continuação da psicologia por outros meios: sofrimento moral e psíquico na economia neoliberal” que a “liberdade liberal” deveria ser na verdade produzida e defendida pelo Estado, ao contrário da imagem não intervencionista normalmente atribuída a essa doutrina; como Thatcher diria: “Economia é o método. O objetivo é mudar o coração e a alma”. Nesse sentido, as intervenções estatais seriam voltadas à ‘engenharia social’ para que o Neoliberalismo pudesse prosperar sem opositores. Não por acaso, o laboratório desse sistema foi o ditatorial Chile de Pinochet, escolha exemplar de como tal doutrina econômica casa bem com o autoritarismo; nas palavras do próprio líder da Escola Austríaca, Frederich Hayek: “Como vocês sabem, é possível para um ditador governar de maneira liberal. E é possível que uma democracia governe com uma falta total de liberalismo. Pessoalmente, prefiro um ditador liberal a um governo democrático sem liberalismo”. Nesse caminho, ao contrário do liberalismo, que esteve focado nas livres trocas, o Neoliberalismo gira em torno da competição, que virá a ser o fator principal em todos os aspectos da vida do sujeito. A sociedade passa a ser pensada como empresa e as pessoas, como empreendedoras e, num mundo onde a competição é obrigatoriamente desigual em seus resultados, as formas de solidariedade genérica que se oporiam a essa cultura mercadológica são extintas. Em sua difusão cultural, haverá também a redefinição do sujeito como estritamente racional em suas escolhas, cuja autonomia é ditada pelas leis de mercado. O ganhador do Nobel de Economia Gary Becker criou o conceito de “capital humano”, em que, os aspectos da vida humana como a educação devessem ser considerados investimentos, e o comportamento humano como uma “escolha racional entre objetivos excludentes visando a maximização de utilidades”. A parUr desse instante, passa a reinar a noção de que devemos ponderar todas as nossas escolhas em suas faces de risco e lucro, passando principalmente pelas relações interpessoais, em processos de gerenciamento que visam, em última instância, a utilidade. Entretanto, essa autonomia é, na verdade, heteronômica; o que ocorre na liberdade neoliberal não é a independência, mas a internalização das leis do mercado em detrimento da éUca social. O próprio Becker conta como pensou as relações entre crime e economia: “Comecei a pensar em crime na década de 1960, depois de dirigir até a Universidade de Columbia [...]. Estava atrasado e tive de decidir rapidamente se colocaria o carro em um estacionamento ou se arriscaria a levar uma multa por estacionar
ilegalmente na rua. Eu calculei a probabilidade de levar uma multa, o tamanho da penalidade e o custo de colocar o carro em uma vaga livre. Decidi que valia a pena correr o risco e estacionar na rua.” Não passa como surpresa que, simultaneamente, as psicopatologias estivessem sendo reformuladas através do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – III. Com o expurgo das neuroses, a biologização da mente e o crescimento de uma indústria de drogas psiquiátricas que chegarão a ser a maior fonte de renda das farmacêuticas em 2011, a depressão toma o palco enquanto a principal doença, justamente por ser uma disfunção produtiva no Neoliberalismo. De acordo com Dunker em “A Biografia da Depressão”: “a individualização do conflito, sua transformação em forma de culpa em associação com o fracasso e a potência produtiva faz a agressividade contra o outro, que motivaria um desejo de transformação da realidade, ser introvertida em uma agressividade orientada ao próprio eu. [...] O depressivo é aquele que fracassa e, ao mesmo tempo, tem sucesso demasiado em tornar-se um empreendedor de si”. Com efeito, a cultura Neoliberal, de valorização da produtividade a qualquer custo, tem em si a normalização de formas patológicas de existir. Ela endeusa práticas maníacas de trabalho incessante e pune qualquer lapso; finalmente, o trabalho deve ser entendido enquanto forma de realização pessoal e fonte de prazer e, àqueles que não alcançam tal realização ou simplesmente são man6dos no desemprego estrutural, ora, a culpa só possuí um endereço. Na mesma linha, surgiu também o ‘neuro-enchancement’ (melhoramento cognitivo), que, como sugere Byung-Chul Han, é um desdobramento da sociedade do cansaço em uma sociedade de doping, na ingestão de compostos ativos, visando a melhoria da performance. Assim, o ser humano enquanto máquina seria levado ao esgotamento excessivo devido a uma infindável elevação de desempenho. Aqui, Han faz uma caracterização que nos é muito úUl: o cansaço na sociedade do desempenho é solitário, atua individualizando e isolando, um cansaço “calado, cego e dividido”. Não há como deixar de notar, novamente, a individualização do conflito. Desse modo, a heteronomia da falsa liberdade e a culpabilização individual existem numa lógica que não permite resistência ao sistema e garante a dominação hegemônica, a segregação e a hierarquização social. Chegamos finalmente, aos fatores que caracterizam o “Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico”. Em “A Loucura do Trabalho”, o psiquiatra e criador da psicodinâmica do trabalho, Christophe Dejours notou como a “tensão nervosa” foi explorada em telefonistas: a proibição de responder agressivamente, desligar e de irritar o outro só possuía uma resolução permitida: reduzir o tempo de comunicação e empurrar o interlocutor para desligar mais depressa, o que acabava por aumentar a produtividade. “De um lado, temos a angústia como correia de transmissão da repressão e, de outro, a irritação e a tensão nervosa como meios de provocar um aumento de produção.” Efetivamente, basta puxar a rédea do sofrimento para aumentar o rendimento; pois são os mecanismos de defesa mobilizados que realmente interessam, mesmo sob o risco de gerar sintomas crônicos e psicossomáticos como a fadiga. Tais processos de gerenciamento tornam-se responsáveis pela paranoia de demissões sem aviso prévio para aumentar o engajamento com as tarefas, o antagonismo e a oposição da competição de departamentos para aumentar a pressão e o valor agregado, a culpa do fracasso individualizado em contraste com o sucesso coletivo como forma de extrair foco e dedicação, formas de trabalho cada vez mais breves através de projetos e a flexibilização das leis trabalhistas. A extração máxima de trabalho, com o mínimo de risco jurídico. Aqui, é claro como o Neoliberalismo, em sua face de mudança da alma, depende da produção de sujeitos que encarem essas formas de precarização naturalmente, por mais que, em outros sistemas nacional-desenvolvimentistas, elas fossem encaradas como quebra de um pacto social, uma traição sociedade-pessoa. Sem falar, é claro, da naturalidade na substituição de “trabalhador” para “cooperado”, “colaborador” ou “associado”. E a que ponto chegamos? Com as flexibilizações do trabalho em nome da empregabilidade, os postos prometidos pela reforma de Temer não se concretizaram; Bolsonaro depois de tentar outras duas
reformas, propôs a criação de modalidades sem carteira assinada, férias 13o e FGTS. Mas, no fim, qual inoculação de sofrimento psíquico seria tão eficiente quanto a ameaça: “ou protegemos a economia ou as pessoas”, “Ou salvamos vidas ou empregos”? Qual poderia extrair tanta dedicação das pessoas quanto a roleta russa da morte ou da fome? O Neoliberalismo se articula diretamente com a biopolítica estatal e nós vivemos sob essa atividade em seu ápice: 5.000 ou 10.000 mortes pouco significariam frente à possibilidade de garantir o lucro – afinal, o engenho nunca pôde parar. No fim, 600.000 pouco significaram. Nesse neofascismo neoliberal à brasileira, quais seriam as alternaUvas? Safatle nos propõe a mudança dos afetos em circulação pelos que permitam o reconhecimento do corpo social e político através da consolidação da mesma solidariedade genérica que fora perdida, como diz em “bem vindo ao estado suicidário”: “se a solidariedade aparece como afeto central, é a farsa neoliberal que cai, esta mesma farsa que deve repetir, como dizia Thatcher: "não há essa coisa de sociedade, há apenas indivíduos e familias". Só que o contágio, Margareth, o contágio é o fenômeno mais democrático e igualitário que conhecemos. Ele nos lembra, ao contrário, que não há essa coisa de individuo e família, há a sociedade que luta coletivamente contra a morte de todos e sente coletivamente quando um dos seus se julga viver por conta própria.”
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