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O amanhã à venda e o sangue que segue regando

  • Foto do escritor: Antonio Motyole
    Antonio Motyole
  • 20 de jul. de 2021
  • 5 min de leitura

Exonerado, alvo de duas investigações do STF, ex-chefe do Ministério do Meio Ambiente – que possui hoje o menor orçamento dos últimos 21 anos – sob cuja gestão ocorreu o maior índice de desmatamento desde 2008, entre outras intermináveis ações contra a própria pasta; não se pode dizer que Ricardo Salles não tentou cumprir o prometido: “ir passando a boiada [...] nesse momento de tranquilidade”. Em meio a invasões de garimpeiros, ao “PL da Grilagem”, “PL da Demarcação”, aos protestos e atropelamento de direitos, as tribos indígenas enfrentam hoje as maiores ameaças das últimas décadas em mais um capítulo do infindável etnocídio brasileiro.

Não seria exagero dizer que os povos indígenas brasileiros estão sob ataque há mais de 500 anos: havia por aqui oito milhões de pessoas espalhadas em mais de mil tribos antes da invasão portuguesa. Depois de anos de escravização, assassinato e expulsão das terras pela marcha expansionista sobre territórios indígenas, no último censo (2010) há cerca de 900 mil índios distribuídos em 305 etnias. Dentre as formas pelas quais o genocídio se deu, em diversas ocasiões ocorreu a contaminação por doenças, as quais os nativos não possuíam anticorpos. O antropólogo Darcy Ribeiro tratou de diversos casos de velhas técnicas coloniais como em 1816 no Maranhão, quando fazendeiros deram roupas contaminadas com varíola no que ficou conhecido como o massacre dos Timbira; sendo que casos similares ocorreram na colonização de Santa Catarina, do Paraná e contra os Botocudos no Rio Doce.

Já durante a Ditadura Militar brasileira, a Comissão da Verdade constatou que “ao menos 8.350 indígenas foram mortos em massacres, esbulho de suas terras, remoções forçadas de seus territórios, contágio por doenças infecto-contagiosas, prisões, torturas e maus tratos”. Apesar disso, foi durante esse período que o Estatuto do Índio foi criado (1973), com o fim de proteger as comunidades e a terra ocupada, garantindo a posse permanente, o direito de usufruto exclusivo e determinando a demarcação das terras indígenas com um prazo de cinco anos. Entretanto, foi só na Constituição de 1988 que eles tiveram sua cultura reconhecida e seus direitos assegurados, pondo fim ao objetivo de assimilação à civilização, à tutela estatal e reforçando os deveres do Estado. Esse progresso ocorreu devido à atuação da União das Nações Indígenas e sua liderança, Ailton Krenak, descendente dos mesmos Botocudos e cuja etnia “Krenak” tinha sido dada como extinta anos antes. Em sua histórica fala à constituinte, o ativista (obrigado a usar um terno devido ao protocolo do Congresso) disse enquanto pintava o próprio rosto com tinta preta de jenipapo: “o povo indígena tem regado com sangue cada hectare dos oito milhões de quilômetros quadrados do Brasil, os senhores são testemunhas disso”.

Mesmo assim, depois da redemocratização, as coisas não melhoraram plenamente, Krenak conta em sua entrevista no Roda Viva que logo surgiu a ideia do “Marco Temporal”, defendendo que a definição de terra indígena deva ser baseada em “se o local era habitado na época da promulgação da Constituição” – segure essa informação por enquanto. Outro caso é narrado pelo líder Davi Kopenawa e suas memórias de quando 40 mil garimpeiros invadiram as terras dos Yanomami durante o governo Sarney – disputa que também segue sangrenta até hoje. Entretanto, a perspectiva finalmente começou a melhorar nos governos seguintes – não direi quais – como lista Gregório Duvivier em seu programa “Greg News”, com o surgimento de: projetos educacionais específicos, a fundação da Secretaria da Saúde Indígena, inclusão nos programas sociais, maior acesso à saúde com o Mais Médicos (55,4% dos postos dedicados à saúde indígena foram preenchidos por profissionais cubanos), gerando uma redução histórica de mortalidade.


Agora sim, chegamos à parte do texto que você já conhece: como o governo Bolsonaro está dando passos largos ao retrocesso. Desde que assumiu, a reforma agrária foi paralisada, não houve novas demarcações de terras, o programa Mais Médicos acabou e a Sesai foi ameaçada, a Funai foi dividida e movida do Ministério da Justiça (onde atuava junto à PF) para o Ministério da Agricultura (sob liderança duma ruralista) e para o MDH (sim, à Damares), a Funai também parou de fornecer cestas básicas e de atender indígenas que vivem em áreas urbanas. Além disso, Mourão tirou a Funai e o Ibama do Conselho da Amazônia e pendurou 19 militares no órgão. Tratando-se da pandemia, os povos indígenas possuem até 4,5 vezes mais chances de se contaminar do que pessoas brancas, dado que o governo censurou durante a apresentação do Dr. Pedro Hallal sobre sua pesquisa quando esteve no Planalto. Como afirma Duvivier: “não é exagero pensar que Covid é a arma que faltava”, exatamente a mesma utilizada por fazendeiros que espalhavam roupas contaminadas.

Além da ameaça à saúde, as maiores preocupações atuais estão no “PL da Grilagem” (2633/2020) e no “PL da Demarcação” (490/2007). O primeiro, na prática, abriria caminho para a regularização de áreas públicas invadidas por grileiros e facilitaria a legalização de invasões onde há comunidades tradicionais, uma versão mais moderada da MP 910/2019 proposta por Bolsonaro.

Já o “PL da Demarcação” reviveria o mencionado “Marco Temporal”, legitimando toda violência histórica que expulsou povos originários de suas terras até outubro de 1988; ele também proíbe a expansão de áreas demarcadas e flexibiliza o contato com tribos afastadas. Esse projeto já foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e segue aguardando uma decisão do STF, marcada para o fim de agosto. Dentre as consequências, a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha destaca o risco da grilagem, o fim do usufruto exclusivo da exploração das terras e a retomada do perigo de contatos forçados com povos isolados, banidos pela Funai desde 1987. Ela retoma ainda a declaração do Presidente da Funai de que não protegeria as terras não demarcadas, incluindo as que já tivessem aprovação do Min. da Justiça. A demarcação, que já é demorada, está sendo mais lenta; o processo normal começa com a reivindicação de um povo, precisa de um laudo antropológico sobre a extensão do território, passa pela aprovação do presidente da Funai, pelo Ministro da Justiça, Presidente e, finalmente, homologação.

Por fim, é importante lembrar que tudo que está acontecendo não é novo, agora está apenas declamado; como o próprio Bolsonaro já o fez: “onde tem uma reserva, tem uma riqueza embaixo; tem que mudar isso aí”. Toda vez que o Vereador Federal promete uma flexibilização do tipo, ele estimula garimpeiros e grileiros, criminosos, a tomar terras na esperança de que elas venham a ser legalizadas pelas sanções presidenciais por vir. Por isso mesmo, Krenak fala de uma guerra constante que só piorou ultimamente: um eterno “morde e assopra”, uma gangorra entre o etnocídio e a continuidade da memória. Portanto, é preciso lembrar que garantir os direitos dos povos originários é garantir a preservação da biodiversidade e de vivências e culturas plurais; é um basta para o desenvolvimento desenfreado que considera a sustentabilidade como um obstáculo e não o que ela realmente é: a possibilidade do progresso propriamente dito.


Como o próprio Krenak coloca em “O amanhã não está à venda”, seu livro sobre a pandemia: “Tomara que não voltemos à normalidade, pois, se voltarmos, é porque não valeu nada [...]. Seria como se converter ao negacionismo, aceitar que a Terra é plana e que devemos seguir devorando. Aí, sim, teremos provado que a humanidade é uma mentira.”



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