O sucesso de Euphoria: de “backstory” e repetição ao impressionismo
- Antonio Motyole
- 10 de mar. de 2022
- 4 min de leitura
Euphoria ocupa um lugar extremamente sentimental para mim.
A aclamadíssima série da HBO conseguiu, em sua primeira temporada, exceder todas as expectativas: desde características técnicas como cinematografia, iluminação, maquiagem e figurino, à um roteiro impecável que entrega um enredo movido pelos próprios personagens. E é exatamente aí que está o maior sucesso de euphoria: o uso de todas as ferramentas possíveis para a imersão na mente de cada um em cena; uma consequência estilística que nos leva a perguntar: como Euphoria parece tão real, mesmo quando não é realista?
Vale ressaltar que vou focar minha fala na primeira temporada, visto que a segunda teve alguns buracos imensos no roteiro, deixou temas de lado, e não apresenta um plano em sua execução – apesar dos momentos memoráveis que perderam o impacto devido aos problemas estruturais
A série começa com a peça fundamental, protagonista e narradora mais do que não confiável. Rue é, antes de tudo, um reflexo da própria experiência do criador da série, Sam Levinson, com as drogas e o vício que teve 15 anos antes e é exatamente essa relação que torna um dos temas principais, a posição da Rue enquanto “viciada em recuperação” (ou quase), tão real. Por ter lutado pessoalmente com essas questões, Sam trata do assunto com uma honestidade brutal. A personagem de Zendaya ao mesmo tempo fala dos momentos “em que tudo para”, em que ela finalmente está em paz, e vive as piores consequências disso, suas preocupações e ansiedades desaparecem sob os efeitos de opióides enquanto ela sofre a violência e o afastamento daqueles que mais ama. Por mais que exija uma devida crítica a ser feita quando se trata da representação de temas polêmicos, Euphoria faz um ótimo trabalho em não glamourizar o abuso e o vício em drogas legais e ilegais justamente por não virar a cara das consequências, sendo que o melhor exemplo (e que provavelmente renderá um Emmy à Zendaya pela sua atuação que carregou) está no quinto episódio da segunda temporada.
Mas apesar disso, é através dos olhos e do que sabe Rue que descobrimos a vida de cada uma das personagens, a peça fundamental da história. No primeiro episódio da série, ela mesmo se apresenta desde seu próprio tempo no útero materno até a situação em que se encontra, saindo de uma clínica de reabilitação, e é esse hábito que dá a base e o “backstory” desse universo. Em cada um dos episódios Rue começa narrando a vida e o trauma fundamental de uma personagem por vez e aqui não posso deixar de reafirmar a importância disso.
A história de Euphoria perpassa, enquanto uma história ‘adolescente’, pelos erros e experiências dessa faixa etária, principalmente pela aprendizagem em torno de relacionamentos. Um dos exemplos mais óbvios é o do trauma de Nate Jacobs ao encontrar os segredos do próprio pai; esse prólogo não só estabelece o choque inicial, mas também conta em detalhes o relacionamento que tinham: o de um pai exigente, frio e que considera que “falhou” ao criar o antagonista principal como violento e manipulador. Mas o propósito desses preâmbulos não é justificar ou desculpar o comportamento tóxico de cada um, e sim explicar e explicitar porque são assim, o que gera uma nova camada de empatia e identificação – afinal, todos temos questões não resolvidas no passado que nos levam a repetição de situações não resolvidas. Um exemplo claro está em como a história das irmãs Howard é contada a partir do mesmo trauma: o abandono do pai e o alcoolismo da mãe. Enquanto Lexi tomou uma posição passiva com fantasias de total controle e protagonismo do próprio mundo – o que culmina na dramatização de sua vida pessoal ao teatro –, Cassie busca não ter que sentir novamente o luto e a falta de afeto – o que traduz nos seus relacionamentos amorosos e a posição obsessiva de agradar a todo custo.
Essa explicação é tão essencial que é uma das bases clínicas da terapia psicanalítica, como o próprio Freud escreve em “Recordar, Repetir e Elaborar” (1914). Expressamos e atuamos aquilo que foi esquecido ou reprimido – repetimos sem notar, até que possamos reelaborar. E isso fica claro na ambivalência da relação de Jules e Rue, mais ainda após o episódio especial de natal em que a terapeuta aponta e reforça a semelhança entre os sentimentos que Rue e a mãe de Jules a causam: o olhar verdadeiro, de quem enxerga através do exterior estético, das roupas e das maquiagens que vieram a caracteriza-la, e a preocupação constante de uma recaída e perda para as drogas das únicas pessoas que a veem.
Falando do figurino e maquiagens (da maravilhosa Doniella Davy), chegamos a como a forma serve ao conteúdo; ou de como as escolhas estilísticas servem à história. Sim, chega a ser uma piada recorrente como os estudantes se vestem no ensino médio de “Euphoria High” ou como certas cenas são surreais, como as cenas da Rue Palestrinha e suas apresentações de slides ou da coreografia de “All for Us”. Propositalmente, o próprio Sam Levinson explicou como ele trata suas cenas em entrevista à Vulture: “Estabelecemos desde o início que cada cena deveria ser uma interpretação da realidade ou uma representação de uma realidade emocional. Não estou interessado em realismo. Estou interessado em um realismo emocional. (…) ‘Como podemos criar um mundo que revele as esperanças e desejos dos personagens que existem nele?’”. O efeito é claro: ao perguntar ao entrevistador se ele sentiu uma conexão , Sam recebe a resposta “Sim, muito forte, apesar de ser um cara branco velho e hétero que cresceu no Texas nos anos 70 e 80. Este programa me deu flashbacks de como era ser adolescente. Toda amizade é apertada, mas ao mesmo tempo suscetível de ser destruída por mal-entendidos estúpidos. E quando você se apaixona por alguém, não está apenas miseravelmente obcecado — alguma parte de você acredita que esta é a última chance de amor que você terá.”
Euphoria, nesse sentido, segue tão eficaz quanto as maiores pinturas impressionistas. Ao transbordar sentimentos das personagens para o mundo ao redor, esses efeitos, aparentemente irreais num primeiro momento, dão profundidade a personalidades com passados complexos e refletem outro desejo de todos nós: que nossa vida seja contada e vivida com cores, emoções e sentimentos dignos de uma produção hollywoodiana. Sam sabe que adolescentes não fazem suas maquiagens extravagantes daquele jeito (ou não faziam até o lançamento da série), mas essa é chave estética para contar uma história impressionista que é tão real quanto nos permitimos sentir.
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