OPINIÃO: Quem defende o direito de impor?
- Antonio Motyole
- 1 de jun. de 2021
- 3 min de leitura
P.L. 504/20 e a Teoria Queer
É uma tarefa extremamente árdua viver no Brasil, principalmente depois de 2019. Esse Brasil (lê-se: Bolsonaro) implora que você se torne anestesiado toda vez que prova que o fundo do poço tem porão. Tendo dito isso, são poucas as coisas que me tiram do sério: camisa polo, máscara de tricô e as incessantes tentativas de desvalidar ou impedir certas subjetividades e experiências de mundo. Esse último foi o caso do Projeto de Lei 504/20 de SP da “Serva de Deus; Esposa; Deputada Estadual” Marta Costa. O projeto pretendia proibir a publicidade que aludisse à diversidade sexual relacionada a crianças sob a justificativa de que as propagandas “trariam real desconforto emocional a inúmeras famílias” e uma incapacidade de discernimento das crianças sobre o assunto. Sob a hashtag “deixe a criança ser criança” e uma suposta defesa da infância, somos obrigados a questionar: por que a mencionada diversidade traria desconforto? E, mais significativamente, quem defende a criança queer? Primeiramente, o desconforto supostamente justificativo é uma reação ao “impensável” que a heteronormatividade procura unificar. Como coloca Judith Butler, a grande pensadora da Teoria Queer, a matriz cultural exige uma unidade causal entre gênero e sexualidade através da heterossexualidade. Além disso, existe uma unidade interna ao gênero construído, que define o homem e a mulher através de sua oposição binária. Isto é, meninos vestem azul e gostam de meninas, que vestem rosa. Logo, toda vez que tal expectativa é quebrada, surge o “indizível”, que, mesmo estando plenamente dentro da cultura, é excluído pela forma dominante. Ademais, segundo a psicanálise, é a perda de um objeto homossexual que, recalcado e escondido, mantém o mesmo gênero como inconcebível. Em outras palavras, quanto mais rigorosa e estável é a afinidade de gênero, menos resolvida é a perda original, de modo que a rigidez e, consequentemente, a homofobia buscam ocultar um possível amor perdido, um amor “impensável” – todo homofóbico é, inevitavelmente, mal resolvido.
A problemática indispensável posta em sequência é sobre a construção do gênero. A grande questão da Teoria Queer está na performatividade individual. Butler mostra que toda ontologia do gênero fracassa devido a uma inexistência do “antes”, pois o gênero, tido como uma prática performativa de linguagem, se assimila a quando dizemos “eu prometo” ou “eu aceito”. Esses discursos não descrevem nem afirmam coisas, eles as fazem. Nesse sentido, chegamos à definição de que “o gênero é a estilização repetida do corpo”, ao passo em que não somos um ou outro gênero. Nossos hábitos repetidos apenas têm como efeito essa identidade, que aparenta ser interna. Como a filósofa propõe: não há necessidade de um agente por trás do ato, o agente, na verdade, é construído através do ato. Tendo explicitado o caráter não natural do gênero, fica fácil notar que a criança que a Deputada Marta Costa defende não existe. Como nos traz o filósofo Paul B. Preciado, em sua crônica “Quem defende a criança queer?”, os ‘defensores da infância e da família’ invocam a figura política de uma criança construída previamente como heterossexual e de gênero normatizado. Justamente por ter sido a criança governada, Preciado busca responder em nome desse corpo que não tem direito à autodeterminação. Desse modo, na crônica, ele se recorda de como o próprio pai impunha a lei cultural através de silogismos: “Começava com ‘um homem tem de ser homem, e uma mulher, mulher, é a vontade de Deus’, continuava com ‘o natural é a união de um homem e uma mulher, por isso os homossexuais são estéreis’, até chegar à implacável conclusão: ‘Se tiver um filho bicha, eu mato’. E esse filho era eu.” A criança acaba sendo usada como um artefato biopolítico que permite a normalização do adulto através de uma política de gênero que dita efetivamente: “ou você é heterossexual, ou a morte o espera”. Essa lei cultural, essa ideologia, que exige desde o berço certos comportamentos, como o já mencionado menino veste azul e menina veste rosa (Damares, estou olhando para você), possui efeitos insidiosos: não só a maior taxa de suicídio na juventude LGBTQ comparada com a de jovens cis- heteros, como também o assassinato de transgêneros - sendo que o Brasil é o líder deste ranking, registrando 175 travestis e transsexuais mortos em 2020, de acordo com o Globo. Aqui, reitero Preciado: qual é essa juventude que ‘a moral e os bons costumes’ defende? Certamente não é a do menino que gosta de rosa, ou da menina que sonha em se casar com a melhor amiga; muito menos a da criança que não entende por que só se pode brincar ou de carrinho, ou de boneca.
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